É uma armadilha. Quando a mulher é elogiada por fazer várias coisas ao mesmo tempo está sendo condicionada a nunca reclamar do excesso de trabalho. Pois recebe o destaque pela multiplicidade e não há margem para o protesto, já que é um dom da natureza.
Assim ela é obrigada a empreender múltiplas tarefas silenciosamente, sem poder de reação. Cada tarefa custa uma grande dose de sacrifício e renúncia, mas não é valorizada por ser resultado de uma pretensa facilidade.
Trata-se de legitimar a exploração feminina. Por detrás da aparente virtude, existe um boicote organizado. Para que ela seja todos papéis ganhando economicamente por um só.
O que mais acontece é o desvio de função. Mulher termina atuando como gestora na informalidade porque dá conta do recado. De modo perverso, ela tem que provar o seu valor antes de assumir a posição de direito que ocupa na prática.
O fato de “dar conta do recado” cria absurda injustiça, atestada na disparidade salarial entre homens e mulheres no país (as mulheres recebem cerca de mil reais a menos, de acordo com o IBGE).
Ela é persuadida a suportar a insalubridade em nome de uma característica de gênero. O estigma disfarçado de qualidade censura avanços e consolida a desigualdade.
Como o homem exerce uma coisa de cada vez, por inexplicável crença cultural, precisa apenas cumprir demandas de sua área. Não é forçado a oferecer mais do que pode.
Parece até que ele é mais focado e concentrado profissionalmente, pois não é reconhecido pela polivalência e não sofre com nenhuma ordem implícita para dividir a sua atenção. No fim, não é exigido tanto quanto as mulheres para alcançar um padrão elevado na empresa.
Seguindo a linha desse raciocínio, mulheres com filhos pequenos terão menos chance de admissão concorrendo com homens com filhos pequenos. Porque a vida pessoal do homem não pesa contra, ela simplesmente não é vista pelo histórico de conduta monotemática.
Por sua vez, a mulher é posta como uma malabarista de nascença. A sociedade impõe que seja feliz como mãe, esposa, funcionária e amiga, além de cuidar da aparência, pela vantagem em relação ao público masculino. Mas a vantagem corresponde a um acúmulo de deveres, nunca traz direto benefício financeiro.
O elogio de gênero esconde o machismo das cifras.
Publicado em O Globo em 04/01/2018
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