quarta-feira, 30 de agosto de 2017

TODO MUNDO TEM UM POUCO

Com a atual evolução da medicina, não haveria super-heróis.

O incrível Hulk, antes de sua transformação verde, tomaria Rivotril e jamais perderia as suas roupas. Poderia até arrumar um trabalho irritante de teleoperador ou de segurança de boate e não mais se irritaria com nada. Batman seria medicado com antidepressivos para contornar o trauma de ter visto os seus pais assassinados em sua frente. Não iria se fantasiar de morcego nem morar em cavernas. Talvez se transformasse em corretor imobiliário. Wolverine, com alentadas sessões de hipnose e regressão, superaria seus antecedentes bastardos, já que foi fruto da infidelidade de sua mãe, Elizabeth Howletts, com Thomas Logan, o jardineiro da mansão. Representaria o Canadá na equipe de esgrima nas Olimpíadas. O Homem-Aranha, com aplicação de um forte antialérgico, estaria normalzinho e, no máximo, subiria em andaimes para pintar murais em prédios nova-iorquinos.

Todos têm em comum a sede de vingança. Todos apresentam um defeito hipertrofiado. Ninguém é herói por uma virtude. Mas por uma falha trabalhada ao extremo a ponto de virar uma arma.

Nenhum traz bons sentimentos. Recalques e transtornos é o que provoca os superpoderes. Conservam a humanidade de perdas e dores debaixo das capas e das fantasias invencíveis. Eles procuram a justiça porque sentiram na pele a falta dela.

E a maior parte dos ídolos da Marvel estaria catalogada com sintomas de esquizofrenia ou psicose ou histeria ou dupla personalidade ou borderline.

Com receitas médicas, a Liga da Justiça estaria extinta.

Numa sociedade que endeusa o equilíbrio, que os super-heróis nos devolvam a sanidade. É de se pensar que suportar um naco de sofrimento não é tão grave assim. Gera disciplina e obstinação. Produz entendimento e empatia com outro. Cria referenciais para a superação de adversidades.

Não devemos nos automedicar nem seguir tratamentos indicados por amigos, muito menos prosseguir com a intolerância máxima a qualquer mal-estar. É preciso aguentar um turno de enxaqueca ou cinco minutos de azia. É salutar não resolver tudo na hora com comprimidos.

A dor não mata, mas a falta de dor com medicação excessiva é assassina, não ajudando a nos prevenir da dependência e nos tirando a força para nos defendermos, sozinhos e sóbrios, da vida.

Os remédios são um controle falso do corpo.

E, se usados com frequência, não de modo especial e provisório, sem a devida orientação, escravizam e alteram o nosso temperamento.

A medicina serve para amparar a humanidade, não substituí-la.

Não dá para curar cem por cento os problemas — que é neutralizar a espontaneidade.

De super-herói e louco, todo mundo sempre terá um pouco.

Publicado em Jornal Zero Hora em 22/08/17

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