Toda morte de um familiar e amigo dói. Toda morte envolve o pesar, como um novelo colorido que acaba antes de se concluir o pulôver.
Vestimos a tristeza e o luto com pena de nossos dias sem aquele riso e aquela voz que enchia os nossos ouvidos de promessas. Quando o outro falece, enfrentamos os nossos limites, as nossas verdades sem esperança alguma. A verdade é tão pequena e feia quando não há mais tempo para fazer diferente.
Mas a morte que mais dói é a que não dói, é a morte constrangida de alguém com quem brigamos. Alguém com quem a gente não se dava bem. Lamenta-se a vergonha da inimizade. Até ir ao enterro ou ao velório surge como uma hipocrisia. Seremos apontados pelos outros como impostores na festa do céu. Faltará coerência para brindarmos o último cálice das pálpebras.
É uma morte que não podemos chorar porque não existiu a intimidade do perdão.
É uma morte desfalcada de uma conversa derradeira, capaz de limpar as ofensas e a boca.
É uma morte com rascunho sujo da caneta e da raiva.
É uma morte órfã, de pai e mãe desconhecidos, longe da transcendência, avulsa, com os pecados mesquinhos e mundanos.
É uma morte aborrecida, desinformada. Corre-se atrás do passado e não se tem como alterar as lembranças (o pedido de desculpas jamais aconteceu para costurar os rasgos da memória).
É uma morte que somente nos piora, pois não melhoramos, dentro do possível, a relação com quem foi embora.
É uma morte em que não podemos elogiar o morto, recomendá-lo com as nossas lágrimas e olhares profundos. É uma morte que nos tolhe de falar e de sentir e de estar presente.
É uma morte que boicota a emoção, a sinceridade, o discernimento.
É uma morte que suspende a vingança, a retaliação, a represália, e tampouco serve como trégua para refletir e repensar as ações.
É uma morte que nos prova o quanto odiar é tempo perdido e que nos priva da ressurreição da segunda chance.
É uma morte silenciosa, mas com nenhuma paz, com nenhuma recompensa das tentativas da consciência.
É uma morte que não termina, que não interrompe os ressentimentos, não oferece um fim restaurador às incompreensões.
É uma morte de obituário de jornal, que se lê assustado, de cabeça e coração baixos, com um espaço contado da respiração.
É uma morte melancólica, em que se tem que rezar mais para si, pela ausência de misericórdia durante a nossa vida, do que pelo ente perdido.
É um nome que vai para a lápide bloqueado em nosso Facebook, suspenso em nossas correspondências e telefone, vazio de conexões recentes.
Quando um desafeto morre, somos nós que morremos dentro do orgulho.
Publicado em Jornal Zero Hora em 17/10/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário