Meu avô sempre dizia que honesto era o seu pai. Para qualquer situação. Quando ouvia as notícias do rádio de manhã na cozinha, no almoço, quando aprontava alguma malandragem e me passava o pito, quando colocava o seu calção e seu chinelo para o entardecer de chimarrão, antes de me dar boa-noite e, de novo, no bom-dia.
Eu confabulava com os meus botões: o que será que ele fez com descomunal excelência e honradez, para ser um exemplo perfeito e recorrente? Chegava a ser chata a evocação, mas não podia menosprezar o amor da sentença, havia uma homenagem a um caráter de exceção, um reverência a um padrão de vida e de clareza. Quisera que os meus filhos pensassem o mesmo de mim no futuro.
- Meu pai é que era honesto. O único homem honesto que conheci.
Já imaginava o seu pai como um super-herói de Guaporé, de sunga por cima do collant, meias coloridas e capa esvoaçante, prendendo assaltantes de banco, ajudando velhinhas a subir no ônibus, desmoralizando os políticos na Câmara de Vereadores, criticando a indolência dos mendigos nos bancos de pedra da praça, devolvendo o troco dos caixas aos aposentados. Sua figura tomou boa parte da memória de minha infância. Pretendia atingir o mesmo grau de retidão, prometi a mim mesmo não mentir mais, com exceção da hora de comer rúcula, que eu detestava.
Ele devia nunca ter atrasado uma conta, nunca ter passado ninguém para trás, nunca ter enganado esposa, nunca ter faltado ao trabalho, nunca ter omitido a sua opinião, aposto que pedia desculpas no exato momento de uma falha e não cedia à tentação da soberba. Pois o antônimo da honestidade não é a mentira, mas o orgulho.
Surpreso fiquei quando o meu avô pediu que eu buscasse correspondência na agência de Correios da esquina e me entregou a sua identidade para a retirada do volume. Constava que ele era filho de Honesto Carpi.
Nunca um documento causou tanto estrago em minha personalidade. Demorei a minha adolescência inteira para desfazer a fantasia.
Publicado em Jornal Zero Hora em 14/11/2017
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