Todos recebem um bônus. A vida dá uma segunda chance, um período extra, uma dilatação de prazo, um visto a mais. Ela não nos entrega para o fim sem um anúncio, sem nos colocar em uma ante-sala aqui mesmo.
A dificuldade é aproveitar a black friday da eternidade. O que atrapalha é a soberba.
Há pessoas que ficam humildes depois de um acidente e refazem os seus hábitos. Percebem que estavam no caminho errado, contrárias à ternura e recuam prodigiosamente para recuperar os laços com a família e amigos. Mudam o jeito de encarar os limites. Tornam-se mais abertas e confessionais, começam a se despedir dia-a-dia pelo medo de não definir mais qual será o dia derradeiro. Criam férias nas folgas, esticam os lazeres nos finais de semana. Possuídos pela delicadeza, falam o eu te amo com a naturalidade de um cumprimento, abraçam e beijam com uma intensidade incomum. A quase morte passa a ser um trailer da existência. Compreendem o significado do puxão de orelhas do vento e dos anjos e escutam com afinco o som de um pássaro e da chuva. São empresários que largam o acúmulo dos bens pelo bem partilhado, são sujeitos roçados pela suavidade do perdão. Antes ricos de números e vazios de palavras, invertem o julgamento e se predispõem a praticar a fragilidade com coragem. Pois é só cuidando dos outros que revelamos o cuidado consigo.
Mas a maior parte dos sobreviventes não vê a luz em extinção, não coloca as mãos em concha para proteger a chama da vela. Despreza os avisos e as profecias. Pelo contrário, como superou uma tragédia iminente, acha-se agora invencível. Acredita que nada pode mais levá-lo embora. Internaliza uma onipotência que agrava os defeitos e os vícios. Dedica-se ainda mais à carreira e à fortuna e abandona de vez os semelhantes, já que eles são inferiores e não desfrutaram da mesma experiência de ressurreição.
Não percebe a promoção, a liquidação dos ideais, o céu se abrindo. Não acorda as horas mortas, não renasce diferente dos escombros, não compra a sua vida de volta, aquela vida que se consumia na indiferença e no egoísmo. Descarta Deus e os homens, como se respirar fosse um dom vitalício.
O susto da morte pode gerar arrependimento ou arrogância, agradecimento ou acusação. Nem sempre é entendido como milagre.
Quem acha que nunca vai morrer não encontra tempo para amar.
Publicado em Donna ZH em 03/12/2017
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