Conservo um costume com a minha esposa: o primeiro a trabalhar não pode sair de casa sem dar um beijo de despedida. Mesmo que acorde o outro. Mesmo que derrube um objeto no escuro. Mesmo que sacrifique o seu mundo onírico.
Dói entrar no no quarto e ter que informar a minha partida. Talvez esteja quebrando o sono leve de minha mulher, rompendo a casca fina do insconsciente. Nem sempre ela pode dormir mais. Nem sempre ela tem uma folguinha nos horários. Mas é o nosso pacto. E acordos entre nós dois são inquebrantáveis - nos lixamos se os demais compreenderão a nossa rotina como dependência e submissão.
Chego de leve e arrisco um toque manso de boca. Seguro a respiração ofegante do café tomado, tento me conter, não quebrar os cristais do descanso, só que é ela me perceber partindo, com o perfume da loção na barba feita, que logo fica espalhafatosa: já me abraça forte e troca juras. Depois se amansa e vira ao seu lado, com o prazer do romance renovado.
Ela diz que a minha aparição não a atrapalha, ela até gosta. Confessa que dorme melhor sabendo que a amo. Espia a minha roupa, faz um check-in em meu terno e gravata, e fecha os olhos docemente. Eu sou uma espécie de despertador de celular, um alarme do amor. Ela já se habitou a ativar o tempo da soneca a parir da minha entrada para o tchau.
Ela acredita que a despedida diária mantém o casal unido. Quem não avisa que está saindo se desapega e pode não voltar. O hábito constrói o respeito e mantém acesa a paixão.
É a grande diferença entre o casamento e colegas dividindo a casa: a intimidade declarada. Quando avisamos da partida com os olhos dos lábios não deixaremos de nos procurar e nos enxergar durante a distância dos empregos.
Nossos bilhetinhos são feitos de pele, com a tinta da saliva. São dois anos invictos, com as datas presas ao calendário do ritual.
Não cumprir o nosso combinado me deixaria mal durante o resto da jornada. Não quero nem pensar viver diferente. Eu sussurro histórias de nosso romance em seus ouvidos, de manhã cedo, para ela adormecer e sonhar comigo.
Publicado em Donna ZH em 17/12/2017
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