segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

DOS OITO AOS 45 ANOS

Não tenho nada a reclamar de minha família. Eu fui protegido por todos eles: os pais, Carla, Rodrigo e Miguel, cada um cuidou de mim em uma fase da vida. Eles se revezavam em vigília, quando um terminava o turno, o outro assumia.

Não chegava a apresentar problemas mentais, mas tampouco parecia normal. Com dicção presa (cuspia na pronúncia de palavras mais longas), andar desengonçado e olhar parado, recebi escolta privilegiada desde cedo. Carla me arrumava, Rodrigo me traduzia, Miguel segurava a mão. Partia para a rua em comitiva.

Havia uma mobilização pela minha aceitação. Para me enturmar, a mãe preparou a festa de aniversário de oito anos aberta para a escola. Preparou convitinho de cisne para ser distribuído aos colegas.

A celebração representaria um salto em minha sociabilidade, a primeira festinha com os amigos. Durante duas semanas, o fogão não parou de madrugada, com preparação de doces, quitutes e salgados. Vivia um sonho, com a expectativa de gritarem o meu nome no "É BIG, É BIG. É HORA, É HORA. RÁ-TIM-BUM". Já antevia a cama ocupada de presentes, dormiria com eles ainda embrulhados, adivinhando o conteúdo pelo tato.

Só que a comemoração aconteceu num feriado e ninguém veio. Aguardei no portão de gravata-borboleta por duas horas. Como morava numa esquina, os passos que contornavam a rua provocavam aceleramento cardíaco. O susto não se cumpria em surpresa: sem a sorte de um abraço e de um riso cúmplice.

Quando entrei de volta para a residência, completamente arrasado, eu vi a minha mãe escondendo as suas lágrimas sentada na mesa da cozinha. Assim como ela sofria comigo, eu sofri por ela. Nosso maior abatimento é com a dor de quem amamos. A minha tristeza logo passou com a tristeza dela. Pois a tristeza dela era maior do que a minha e busquei consolá-la:

– Não há problema, mãe, a gente congela a torta e usa no ano que vem.

Hoje, completo 45 anos, e queria dar os parabéns para os meus pais e irmãos. Valeu o esforço, vocês conseguiram: eu me sinto amado.

Publicado em Jornal Zero Hora em 24/10/2017

Nenhum comentário: