Arte: Eduardo Nasi
Minha filha, não desista de cantar, não desista de suas letras tão lindas e esquisitas, de sua voz que tem a percussão contagiante de um tambor.
Vamos encaixotando os sonhos do armário para uma gaveta, de uma gaveta para um caderno, de um caderno para uma pilha de folhas. E não resgatamos mais o ânimo por absoluta falta de espaço em nossa vida. E nem percebemos que abandonamos o devaneio mais selvagem e puro por ofícios mais discretos.
Maravilha que cursa Letras. Maravilha que vem gabaritando as matérias. Mas foi feita para cantar a dor que nem doeu ainda. Não moralize os seus sonhos de criança. Compõe desde os oito anos. Já são quinze anos nessa pesquisa de si mesma. Não jogue fora a sua conexão do mundo com a sua dor.
Não é preciso assassinar a infância para ser adulta.
Lembra que você inventava um microfone com o secador e conversava com a televisão? Quando eu lhe pegava em flagrante, dizia que não era nada. Não continue dizendo que não é nada. Não adianta dizer que é nada.
Não fuja de sua vocação. Criou um canal no Youtube para divulgar o meu trabalho poético e o de sua vó, mas nunca se mexe para as suas próprias canções.
Será que atingiu o fim das tentativas? Será que realmente pagou o palco com o seu suor? Será que não buscou uma aparência menos agressiva e mais aceitável?
O que pode ser pouco para você já é muito para os outros. A exigência cega. Não seja rigorosa a ponto de se calar definitivamente.
A morte injusta para o talento nem é o esquecimento, é ficar confinado na solidão. Praticava doze horas por dia, depois reduziu para seis, para três, e agora acredito que não dedilha nem alguns minutos. Logo mais o violão amado se tornará artigo para o Mercado Livre e o estojo, um caixão para guardar tralhas de escritório.
Sei que é desgastante formar uma plateia de amigos e inimigos imaginários em seu quarto. Os segredos nos consomem. Entendo a vontade de largar tudo jurando que é ilusão. Mas não é verdade, você é uma pessoa diferente armada de seu violão, carismática e misteriosa. Porque unicamente o violão desarma as suas palavras.
Minha filha, quantos desistem de sua banda, de seu livro, de seu cinema, de suas telas para uma vida comum e de menor oposição? Só para não produzir barulho na noite da família. Só para não incomodar. Só para não ter que pedir dinheiro emprestado. Só pela independência que é sinônimo de burocracia.
A beleza demora mesmo. Vem depois de fiascos e desistências. Tem que insistir mesmo sem vontade. Fechar os olhos e seguir beijando o vento da madrugada.
Eu pretendia ser jogador de futebol. Hoje já me contento com o meu jogo na segunda-feira com os amigos. Em seguida, vou me satisfazer em apenas lembrar que jogava bem. Fui desativando os desejos e me conformando. Não subestime a nossa vontade de se conformar, é infinita.
Não tem ideia do que poderá ser o remorso daqui a uns anos quando o máximo que fizer será tocar em um churrasco, pedindo desculpa porque faz tempo que não toca. A infelicidade é uma saudade do que não vivemos.
Viva até acabar, até esgotar a melodia de seu sistema nervoso.
Mais do que o chão você não cai, você somente aprende a andar. Passarinhos também caminham. É uma fase, um pouso para ciscar as migalhas e depois voar novamente, não transforme o chão em desterro.
Você não tem que andar com as próprias pernas, pois é uma cantora, tem que andar com os próprios braços nas cordas de seu instrumento.
Se eu lhe cantava para dormir quando pequena, talvez seja o momento de retribuir e cantar músicas para acordar o seu pai. Espero o colo de seu timbre.
O futuro incerto é melhor do que um futuro morto. Te amo demais para não reparar.
Publicado em O Globo em 25/05/17
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