segunda-feira, 28 de agosto de 2017

URSINHO AZUL

Foto: Divulgação


- que vontade de beijar a sua careca -

Por mais que eu o conhecesse nunca o conhecia. O que era para a maioria fundo falso, para você era fundo verdadeiro. Não me escondia nada, pois tampouco sabia. As informações de você para você vinham aos poucos. Não deixava de me contar nada, mas somente contava a verdade. Quem é econômico na fala é porque só fala quando dói mesmo.
Excesso de verdade dói. Havia em você um caminho direto, sem escadarias, sem bloqueio, entre a intuição e a palavra.
Meu amigo misterioso, você partiu hoje. Bem do seu jeito. Sem malas e bilhetes e homenagens. Como se fosse passar uma temporada em um país diferente. Com a diferença que chaveou a porta para dentro. Você apenas escrevia por música. Mais poesia do que qualquer poeta. Mais ópera do que qualquer enredo. Seus personagens nunca apresentavam sobrenome, órfãos de passado e sedentos de futuro. Você não era pai deles, mas irmão gêmeo do desconhecido. Vivia igual a todos eles, zanzando pelo mundo, do litoral gaúcho a Londres, em idêntica pobreza. Nunca existiu um escritor tão despojado quanto os seus próprios protagonistas. Nem melhor, nem pior: absolutamente igual. Não possuía nenhuma vantagem por estar escrevendo, jamais começava uma história prevendo o fim. O fim nunca existiu para a sabedoria.
Revejo os nossos momentos juntos, polegada a polegada de nossos abraços, e não descubro algo que faltou dizer um para outro, nos amávamos em silêncio, meu amigo misterioso.
Quem lhe via fechar o portão do seu pacato prédio no Fernando Machado em direção ao centro não imaginava estar cumprimentando um monstro sagrado da literatura. Não descobriria a sua fama pela aparência. Sempre saindo de boné e camiseta básica, porque não desejava se diferenciar de ninguém, mas se esforçava para desaparecer na multidão anônima. Tinha a vocação de se desintegrar até ser átomo apaixonado, palavra poderosa na nuvem de odores e sons da manhã.
Acho que você pretendia ser um pássaro, ou já era um, enjaulado em seu corpo esguio e nos óculos de aros escuros. Ultrapassava a sensibilidade da pele, endurecida a nos proteger, para atravessar os relâmpagos e uivar para chuva. Homem é muito medroso, e você nunca foi. Preferia os dias cinzentos.
Saudade de beijar a sua careca desde que desapareceu. Sua careca parecia uma barba malfeita. Arranhava os lábios. Trazia gosto de estar vivo, quase sangue. Podia hoje esfolar os meus lábios em sua careca para que visse o quanto você fará falta.
Lembro quando levei Vicente pequeno ao seu apartamento. Espaço simples, desfalcado de retratos e quadros. O básico do básico no lugarzinho escuro. Tudo o que ganhou viveu. Tudo o que ganhou usava para a sobrevivência.
Não manteve posses e patrimônios. Conservava apenas um laptop como relógio de seu universo etéreo.
Coloquei o meu filho no colo e sentei no seu sofá de três pessoas. E você pediu um minuto para nós e reapareceu com um ursinho azul. Entregou para ele e riu silenciosamente. Inclusive, o seu riso vinha na forma de silêncio.
Um ursinho absurdo naquele ambiente de solteiro convicto.
Desculpou-se por não dispor de brinquedos, brincando com a luminosidade dos nossos olhos.
- Mas olha o que consegui!
Um ursinho surpreendendo a criança em mim e a criança que eu carregava. Como um adulto que improvisa no vazio e arranca um prêmio de uma barraca junina ao acertar as bolas na boca do palhaço.

Você não existe, João Gilberto Noll, não entendo como alguém que não existe pode morrer.

Publicado em 29/03/17

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