O adeus não está representado no aceno ou no beijo arremessado para longe, na lágrima desajeitada ou em uma música plangente.
Quem entende de despedidas é a caixinha de papelão. Nenhum objeto é mais emblemático de nossas partidas ao longo da vida.
A gente precisa da caixinha para dar adeus a casas, a empregos, a pessoas. No fundo, não serve somente para carregar mantimentos no mercado, e sim para carregar a nossa saudade. A caixinha é o buquê dos nossos objetos.
Como um papelão armado de suas pontas encaixadas pode ser tão poderoso e onipresente em nossas melancolias?
Um origami gigante de nossas privações e provações. Só será adulto quem um dia depender dele.
Eu me socorri de uma caixa para esvaziar a minha mesa e gavetas quando fui demitido. Passei pelos corredores com ela estendida em meus braços. Uma urna com as cinzas de minha memória do serviço. Todo mundo constrangido, de cabeça baixa, na repartição aberta e envidraçada e eu de queixo levantado, não olhando para ninguém, determinado a não me emocionar. A feição paralisada pelo esforço de não chorar em público.
Ou quantas caixinhas recolhidas dos supermercados serviram para acondicionar livros e badulaques pessoais nos fretes do endereço antigo ao novo, até me aquietar em algum bairro? Eu apenas procurava as caixas nas horas derradeiras, como um amigo avulso, solicitado de madrugada nas penúrias.
Em quantas separações eu encontrei o consolo das abas pardas para consumar a partilha e empacotar o amor? As caixas são continuações das malas no fim dos relacionamentos.
E pensar que o material que nos ampara ao trocarmos de residência é a residência inteira do mendigo. É onde ele estabelece a sua manjedoura nos viadutos e marquises. Da pobreza áspera do papel, ergue as paredes de sua morada imaginária.
As caixinhas ínfimas, inúteis, abandonadas no decorrer dos meses, têm um significado especial nos desenlaces. São as confidentes de nossos limites. Provisórias, mas pontuais. Esquecidas, mas com a vocação de braços quando o mundo não cabe em nossos olhos. Essenciais ao transporte e logo sacrificadas na coleta seletiva. Duram o tempo de nossas dores, placenta de nossas mágoas. Elas nos ajudam a nascer de novo em outro trabalho, em outro lugar e em outro coração.
É observando agora uma caixinha vazia que vou enchendo o seu fundo com minhas lembranças. E escuto um latido sufocado lá no distante de mim.
A caixinha foi um berço em 1981. Do meu primeiro cachorro. Quando ainda ele não tinha cama. Eu dormi no chão naquela estreia, aos nove anos.
Cobri meu bichinho com um cobertor xadrez e fiquei a noite inteira ao seu lado, vigiando a sua respiração.
É aceitando a tristeza, que descobrimos as nossas grandes alegrias.
Publicado em Jornal Zero Hora em 27/06/17
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