quarta-feira, 30 de agosto de 2017

VIZINHO A MODA ANTIGA

Podemos passar a vida inteira sem conhecer os nossos vizinhos. Cumprimentando apenas no elevador, armando fofoca pela aparência ou registrando reclamações no condomínio pelo excesso de gritaria de uma briga ou pelo volume alto de uma festa. Não conhecer é falar mal.

Mas tenho um vizinho à moda antiga. Como se morássemos no interior. Seu Carlos. O Seu é um título de nobreza. Um dia, do nada, ele me ajudou a carregar as compras do mercado. Ele me viu transportando 20 sacolas em duas mãos, foi fisgado pela compaixão e emprestou os seus braços. Em seguida, o recompensei com cervejas geladas de minha preferência. Eu disse que não precisava, ele disse que não precisava. Gentileza é fazer quando não precisamos.

Criamos uma cumplicidade de corredor. Numa noite, ele confessou que cozinhava. Eu elogiei e comentei que adorava dobradinha. Não é que ele apertou a campainha com um cumbuca de mocotó? Não imaginava uma tele-entrega tão rápida do primeiro ao terceiro andar: o prato ainda fumegava, para inveja da rapidez dos motoboy. Retribuí com meu lombinho de queijo e molho barbecue. Eu disse que não precisava, ele disse que não precisava, seguíamos não precisando, pois cordialidade é um excesso de bom humor.

Quando falta arroz em casa e me bate uma preguiça de caminhar até o mercado, desço e pego um pouquinho do pacote do Seu Carlos. Já o abasteci também de feijão e sal. Brindamos a amizade com xícaras de grãos.


Somos irmãos de andares, da esquina do olhar e de endereço. Para nos comunicar, usamos o interfone do coração, como duas crianças deslumbradas com o alcance surpreendente de Walkie-talkies.

Sempre preparo almoço pensando em um prato a mais, imaginário, destinado a ele. Vá que ele goste. Ele não se dá por rogado e aparece de repente com uma fôrma de nega maluca. Os filhos soltam uma gritaria com o doce inesperado para o café da tarde. Seu Carlos, para eles, já é tio Carlos. Uma nova honraria adquirida pelo convívio.

Estamos próximos sem entender direito como começamos a lealdade — nos ajudamos a pregar quadros, a trocar lâmpadas, a arrumar chuveiro. Trocamos receitas de construção, limpeza e culinária.

Confio nele a ponto de deixar a chave do apartamento em minhas férias. Ele confia em mim a ponto de abrir a porta de seus segredos.

Poderíamos passar a vida inteira sem nos conhecer. Mas não precisávamos e precisamos hoje cada vez mais um do outro.

Publicado em Jornal Zero Hora em 23/07/17

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