Enquanto vejo as mãos de minha mãe livres na mesa, gesticulando com ênfase italiana e passional, eu lembro que nem sempre foi fácil encaixar os meus dedos em seus dedos.
Na infância, éramos muitos filhos. E na hora de passear tínhamos que brigar para andar de mãos dadas com os pais. Quatro mãos concorridas a tapas pelos irmãos.
Uma das crianças habitualmente circulava solta, esperando a sua vez de ser eleita para o contato.
E a mãe oferecia, então, a mão invisível do grito:
- Anda mais rápido!
Ela espichava o olhar para não extraviar uma das crias da ninhada.
Imagino o quanto mãe e pai sofriam para controlar as nossas brincadeiras nas saídas para a rua e as frequentes e arriscadas distrações. O quanto penavam para convencer a turma a atravessar na faixa de segurança e nos fixar no rumo certo.
Um carretel de berros e alertas mantendo o bando unido nas caminhadas pelo centro de Porto Alegre. Um carrossel de preocupação e ternura, para ninguém se perder e ficar para trás. Um circo de loja a loja, de restaurante a restaurante
Não facilitávamos os seus cuidados: mexíamos em pedrinhas e flores nos canteiros, parávamos para colher frutas, encarávamos as vitrines pelos sonhos dos reflexos.
- Não mexa aí!
Os filhos que se mantinham pendurados nos cabides dos braços não eram o problema. O medo se voltava para o avulso, o que andava próximo e perigosamente independente, por absoluta falta de mãos.
E eu me sentia o filho menos querido quando terminava sendo o escolhido a perambular a sós. Nem queria a mãozinha do irmão, que se equiparava a uma esmola. Não admitia compaixão: desejava tudo ou nada.
E eu me sentia o filho dileto e mais amado quando chamado para fazer a frente de combate. O sorriso de satisfação e orgulho vinha fácil e rápido. Óbvio que provocava a ovelha desgarrada com a lã crespa de minha felicidade.
Disputávamos a atenção como quem trava duelo de garfos pelo último bolinho de chuva na bandeja.
As andanças desesperadas da meninice influenciaram os meus passos. Sou ansioso para chegar a algum lugar, mesmo quando me encontro com folga e adiantado. A ansiedade obedece ainda ecos dos comandos materno e paterno.
Hoje os pais, velhos, já separados e morando cada um em seu apartamento, estão com as mãos disponíveis. Mas os irmãos esqueceram a avidez da concorrência. Não mais se angustiam pelo privilégio.
Talvez tenham que reparar, como eu agora, que a dinâmica familiar se inverteu. Eles é que precisam de nós, não mais nós deles.
Sou eu que devo levá-los a passear. E vê a minha sorte adulta, bem maior do que naquele tempo. Eu possuo exatamente um par de mãos para não deixar nenhum deles sozinho neste mundão de fragilidades.
Publicado em Jornal Zero Hora em 11/07/17
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