terça-feira, 29 de agosto de 2017

CHINELO COM MEIA

Uma prova de que o gaúcho dá certo e tem uma improvável capacidade de se adaptar em qualquer lugar é o chinelo com meia. É a indumentária espiritual de casa, da vadiagem doméstica, não existe nada mais tradicional da Região Sul, não perdendo em prestígio folclórico para a bota e a bombacha.

Só nós mesmos para estabelecer-se a improvável combinação. Não é anatômico, agride igualmente o conforto da meia e do chinelo. O dedão fica como uma pedra a ser arremessada de um estilingue. Quem nos enxerga caminhando jura que será atingido. Somos Davi contra a fatalidade hostil das estações.

Não é tampouco bonito, tem um quê de engessado, de manco, produzindo um andar peculiarmente arrastado. As sandálias romanas eram mais confortáveis.
E usamos de propósito, por desdenhar das facilidades. A tira de borracha com a lã expressa o nosso temperamento dramático, exagerado, feito de extremos.

O escultor pelotense Antônio Caringi bem que poderia ter descalçado o Laçador e posto umas havaianas com meia. Constaria como mais de uma de nossas maluquices.

O hábito traduz a nossa personalidade entremundos: conversar aqui e escutar ali. Revela o espírito de quem não quer perder nada: urbano, praiano e rural ao mesmo tempo.

Chinelo com meia é ideal para tomar banho de nevoeiro e buscar o jornal na porta, é ideal para caminhadas no pátio. Não dependemos de sol para nos bronzear, sempre encontramos um jeito de rosear as bochechas no lar, ainda que seja com um copo de quentão.

Designa o nosso orgulho do inverno, a ponto de atravessá-lo com um adereço de praia. Quem mais ousaria? É reconhecer o frio para tapar os pés, mas jamais se acovardar para negar o chinelo.

Representa o casamento da residência com a rua, da sala com o quarto, do litoral com a serra, é o dentro e fora no mesmo pé. Assim como nossa afetividade é agressiva, gritando logo na hora de cumprimentar, o nosso orgulho é resiliente com a sobreposição inusitada de peças.

Os opostos se atraem em cada gaúcho.

Publicado em Jornal Zero Hora em 04/07/17

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