terça-feira, 29 de agosto de 2017

IGUALDADE, LIBERDADE E FRATERNIDADE

Meus padrinhos eram os meus avós paternos. Mas, como já eram avós, esqueceram de que eram os meus padrinhos.

Tinha inveja da madrinha do meu irmão Rodrigo: Nayr Tesser. Sempre atenta, sempre com visitas inesperadas, cantando Edith Piaf. Sempre alegre. Sempre com papagaios nos ombros, seus originais animais de estimação.

Eu recebia meias e chocolate Bis, Rodrigo ganhava Ferrorama e Autorama.

A concorrência desleal não permitia dúvidas. A tristeza não decorria da comparação, mas da intensidade de seu amor. Tampouco me ressentia da diferença econômica dos mimos, e sim da algazarra das visitas.

Nayr representava uma mulher moderna já nos anos 70: independente, falando de sexualidade abertamente, não devendo a ninguém, carismática e fortalecendo a identidade a partir da generosidade, não do egoísmo e do alheamento. Dava até pena interrompê-la. Calava os mais céticos. Professora de linguística, politizada, comprava brigas pelas minorias e defendia a pureza firme da ética em contraste com a imperfeição das leis.

Ou eu babava, ou suspirava por ela.

Além de ser melhor amiga da mãe, cuidava da gente indiscriminadamente. Veraneávamos em seu chalé em Imbé. Ela nos salvou várias vezes do calorão sem trégua de Porto Alegre. Fornecia gibis que não havia como comprar. Ampliou o nosso repertório alimentar com iogurte caseiro e açúcar mascavo.

Figura avançada, libertária, libertadora, inquieta, que me enchia de orgulho por não compreender inteiramente. Despertava mistérios por qualquer lugar que passava. Enfrentava oposição e resistência porque nunca foi submissa neste mundinho machista.

Com lenço no pescoço e olhar claro de ametista, abria caminhos na fogueira das vaidades. Chamávamos de Joana D'Arc da família.

Não esqueço de um dos seus gestos mais emblemáticos. Quando defendeu a tese do doutorado na UFRGS, pediu licença para a banca e retirou de sua malinha um porta-retratos.

Ali, respeitosamente, como se fosse seu criado-mudo, colocou a foto de pé na mesa. Vinha a ser a imagem de seu marido falecido, Henry. Para que ele pudesse assistir a sua argumentação de onde estivesse.

— Quero prestar homenagem ao único homem que teve coragem de se casar comigo.

Que sirva de exemplo infinitamente. Depois de duas décadas daquela banca, os homens não aprenderam e ainda têm medo de mulheres bem resolvidas.

Publicado em Jornal Zero Hora em 23/05/17

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