terça-feira, 29 de agosto de 2017

QUERIDA IONE

Faz muito tempo que não escrevo uma redação para você. Desde a quinta série. Para um menino de 11 anos, você me salvou. Salvou a minha voz. Eu falava errado e você me pôs a escrever. Eu podia escrever certo o que falava errado. A página era a minha pronúncia bonita. Na folha, ninguém notaria que errava o erre fraco e só conseguia o erre forte, ninguém perceberia que falhava com o fl e que saía com o som quebrado de v. Escrevendo, poderia ser um ator de novela, um galã.

Não tem ideia do que provocou em mim quando passou a exigir duas redações por semana. Toda a turma reclamava da pressão, menos eu, festejando em silêncio a conversão do timbre para letra.

Até hoje você continua lecionando na Escola Municipal Imperatriz Leopoldina. Não mudou a sua vocação, não desistiu nessas três décadas, mesmo com o salário baixo e a falta de valorização do magistério.

Foi sempre uma guerreira, com a sua letra redonda e as estrelinhas coroando a nota. Sorte de seus alunos. Se sou escritor, devo parte de minha vontade a você.

Você com seus olhos azuis faiscando fé. Você com os seus vestidos floridos. Você com as suas bochechas vermelhas. Você que não permitia que chamasse de tia para não envelhecer. Você, minha "sora", meu empurrão para voar, meu impulso de tinta, minha confiança.

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Numa escola simples, somente com giz branco e o quadro verde, na pobreza de um parquê com várias tábuas faltando, ofereceu a riqueza da língua portuguesa. E me inspirou a não desistir de mim, apesar do bullying, apesar do corpo desajeitado crescendo, apesar dos amores platônicos pelas meninas que só me queriam como amigo.

Eu entendia que a emoção tinha como ser organizada, não precisava sofrer desordenado. As lembranças eram roupas que eu podia lavar, passar e dobrar. Tudo o que eu sofria podia virar uma coisa bonita, para que os outros não mais sofressem como eu.

Trocávamos secretamente cartas nas nossas lições: eu com a caneta azul e você com a caneta vermelha.

Na verdade, agiu como a minha primeira leitora. Suas correções floresciam no canto das minhas páginas pautadas. Tanto que quando um leitor sublinha algo de meus livros, penso que vem também de sua mão.

Para aprender a amar a vida, bastava escrever as 25 linhas por aula. Como agora. Aos 44 anos, saiba, ainda escrevo para você, por você, sempre.

Publicado em Jornal Zero Hora em 16/05/17

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