Arte: Divulgação Pixabay
Um dos enigmas de minha vida é se o prato é para um ou para dois. Por mais que tenha amadurecido e frequentado restaurantes, ainda não desembaracei a questão e sou um eterno novato na caligrafia do cardápio. Sempre que conheço um lugar, erro a medida. Eu me apoio nas fotografias do menu, viro um analfabeto apenas lendo imagens e não chego a nenhuma conclusão.
Quando o garçom diz que é para um, sobra. Quando o garçom diz que é para dois, falta.
Jamais acerto a quantidade de comida no prato. Ou me apresento avarento ou me descubro perdulário. Arranho a minha imagem diante da minha família.
No fim, qualquer que seja o resultado, a mulher me humilha com o seu sermão. Já aguardo o comentário com o cafezinho e a conta:
– Podíamos ter pedido um só. (E sinto que não estou ajudando para combater o desperdício do mundo.)
Devíamos ter pedido mais. (E parece que sou um pão-duro.)
Certamente ela ensaiou a maldade com o garçom. Ou eu solicito demais ou solicito de menos, influenciado pela frase ambígua do atendente: é bem servido. Bem servido para quem? Para um rei momo ou para uma porta-bandeira?
Tento adivinhar como que o garçom me enxerga para enxergá-lo melhor, se devo aceitar a sua recomendação ou confiar em meu instinto, se ele acha que como muito ou pouco.
Pedir comida é jogar poker. E não há como desvendar se o garçom está blefando. Não sei qual a orientação que recebe. Não sei se ele me inspira à abastança para encorpar seu dez por cento ou que realmente pensa que a melhor propaganda é a honestidade. Procuro decodificar as suas sobrancelhas para verificar a veracidade do discurso, se é leal ou uma vontade de agradar ao seu chefe.
Porção para um ou para dois? Que trauma infindável, ser ou não ser Shakespeare.
Pior que o amor é igual. Quando começamos uma relação, no início mesmo, tateando às cegas, nunca definimos se a pessoa ama por um ou por dois, se está para o banquete ou para o lanchinho, se ela pretende construir um lar ou busca se divertir e manter a sua vida de solteira, se somos projeto sério ou distração, se somos candidato a moldura ou um rostinho colecionável do Tinder, se é caminho para a rodoviária ou conexão de aeroporto.
As confissões são controladas para não assustar nem decepcionar. Não dá para falar no primeiro encontro que deseja casar e ter filho, senão sobra comida. Assim como não dá para censurar os sonhos por completo, reduzindo o encontro ao sexo, senão falta comida. A generosidade com os desejos é malvista, assim como a mesquinhez.
Eu vou morrer sem entender se a porção é para um ou para dois, se o amor é para um ou para dois e como alguém acha bonita uma gravata-borboleta.
Publicado em Donna em 03/04/17
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