Foto: Reprodução pexels
Você lava a roupa, estende, arruma as camas, ajeita os ambientes progressivamente dos quartos à sala, esfrega os banheiros, desmonta a bagunça generalizada, cozinha, limpa as panelas e a louça, seca e guarda os pratos, recompõe as prateleiras, varre, encera o chão, deixa o universo brilhando, lustroso, para não ser festejado.
Dedicou quatro horas do seu dia para absolutamente nada. Executou um cronograma rígido e hierárquico de faxina (uma tarefa de cada vez), cuidando para que sobrasse tempo para sair ao serviço, e não ganhará, ao final, um mísero “muito obrigado”.
Foi uma trabalheira inútil e anônima. Conheceu a essência da injustiça, que nasce da sobrecarga do lar.
Como repetirá a rotina na manhã seguinte, estará escravizado pela sua disposição e força de vontade.
Não será admirado, não será elogiado, não receberá cafuné e salva de palmas.
E, o mais grave, você que está errado. Pois não havia necessidade, ninguém pediu para que fizesse coisa alguma. Você fez porque quis, porque não conseguiu esperar. A casa se arrumaria sobrenaturalmente, comandado pela sombrinha e espírito da Mary Poppins. Antecipou-se de modo egoísta, por absoluto capricho.
O que incomoda é que, além da completa ausência de reconhecimento e recompensa, você ainda terá o estigma de doente.
Acabará mal falado. Sofrerá bullying da família inteira. Todos dirão que é um neurótico, um maníaco por limpeza. E que deveria procurar tratamento terapêutico, já que jamais sossega.
Nas conversas com amigos, não escutará de sua esposa ou de seu marido que é um exemplo maravilhoso, que cuida de tudo e sempre facilita a vida.
Ouvirá, por sua vez, que é autoritário, impositivo e não oferece chance para qualquer um demonstrar a sua boa vontade.
Os preguiçosos são tão preguiçosos que não cuidam nem de sua culpa e repassam a responsabilidade adiante. Esquecem que não há empregada doméstica para cumprir o serviço, esquecem que o descanso não vem primeiro do que o trabalho, mas depois, resultado e glória da ordem.
É como revivêssemos a crença da teoria da geração espontânea, que vigorou até meados do século 19. Rãs, cobras e crocodilos eram gerados a partir do lodo dos rios, assim o fogão, a pia e a geladeira ressurgem limpas de nosso abandono.
Não entendo como ocorreu a inversão. Limpeza hoje é doença, sujeira é independência. Limpeza é tirania, sujeira é democracia. Limpeza é invasão da intimidade, sujeira é respeitar a liberdade do próximo.
Aqueles que se dedicam a cuidar da casa e da criação dos filhos, simultaneamente ao seu emprego, são identificados como ansiosos. Matam-se de trabalhar e ainda aguentam o questionamento perverso de sua reputação.
Os preguiçosos nunca dão o braço a torcer. Nem os braços são torcidos nos baldes da gentileza.
Publicado em Donna em 10/04/17
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