terça-feira, 29 de agosto de 2017

CHEIRO DE BERGAMOTA PELA CASA

O amor chega de mansinho, não faz alarde, não quer nem falar alto para não acordar o coração de seu dono.

Sai de nosso corpo a paixão gritona, barraqueira e escandalosa e o amor ocupa o seu lugar, respeitoso e suave, com cheiro de amizade eterna. É uma mudança total de inquilino na alma.

A paixão tinha modos de adolescente: arfava rebeldia e egoísmo, pedia pressa e urgência, riscos e aventura. Já aparece, de repente, de sua luz angustiada, a sombra do amor, um senhor de idade, cortês, com a sabedoria da paciência, não cobrando qualquer falta.

A paixão não ficava em casa, comia sempre fora, aparecia somente para trocar de roupa, viajava e gastava loucamente o que não tinha. Entra na pele um sentimento distinto, caseiro, disposto a maratonas de séries e filmes na cama, interessado em comprar panelas e almofadas, atento ao mundo e aos amigos de novo.

A paixão, antes selvageria, é substituída pela delicadeza do amor. É como o fim de um feitiço e o início de uma longa serenidade de aceitação e presteza.

Na paixão, todo mundo se acha imortal. O amor é a mortalidade que se aproxima e o desejo secreto de envelhecer junto.

Instaura-se no temperamento um tempo de ternura. O amor surge do nada num suspiro na mesa ou numa chuva martelando a janela.

Você olha a sua namorada ou o seu namorado com uma tranquilidade que nunca existiu na vida, com uma certeza que nunca aconteceu. Conhece uma confiança de laço e percebe que quando dizia eu te amo ainda não era um eu te amo, era uma vontade de amar, e que agora desafia a rajada de vento para pronunciar o primeiro autêntico eu te amo. E a outra pessoa, acostumada a ouvir o eu te amo, não entende que é um inédito eu te amo e não nota diferença nenhuma e você terá que, portanto, repetir com toda a força para que ela acredite.

E não entregará um buquê de flores para celebrar o momento, não puxará uma joia de uma bandeja de veludo, os cuidados tornam-se discretos e constantes.

Pegará uma tangerina da cesta da cozinha e, em vez de pensar em si primeiro, será tocado por uma esquisita generosidade.

Oferecerá a fruta, como se fosse recém colhida da árvore:

– Quer que eu descasque?

Diante do sim, tirará a casca lentamente com os dedos e entregará gomo por gomo na boca de quem finalmente ama.

Só o amor pode ser sublime na banalidade e não se intimidar com o cheiro de bergamota nas mãos.

Publicado em Jornal Zero Hora em 12/04/17

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