Para Jerônimo
O vô tomava um cálice de vinho no almoço e na janta. O neto terminou sendo sommelier para perpetuar a memória dos círculos na toalha de linho e da gargalhada rubra no cristal.
Todo o final de semana costumava ser sagrado para os dois. O neto adulto levava debaixo do braço a garrafa mais cara para beberem juntos. Durante quarenta anos, mantiveram a rotina, até o avô falecer. Os trabalhos começavam na mesa da varanda, migravam para a mesa da sala e terminavam na mesa do pátio, entre pedras e cactos.
O neto era o seu traficante de aromas, o seu contrabandista de sentimentos, a sua extensão ancestral.
O avô, assim que bebia o primeiro gole, dizia a mesma coisa: – É o melhor vinho da minha vida.
O neto ria da sentença, apesar de nunca definir como o novo poderia ser melhor do que o anterior. Não era capaz de acertar sempre e sempre se superar. Mas, por mais que o rótulo fosse diferente, a garrafa diferente, tratava-se do melhor vinho para o avô. Aquilo o enchia de orgulho e ele acreditava, como uma criança acredita em anjos, acredita em recompensas das formigas pelos dentes caídos, acredita em cruzar os dedos para ter sorte.
Uma tarde, antes do avô baixar hospital, ele perguntou qual de verdade tinha sido a mais encantadora degustação.
O velho, meio que tossindo e meio que tirando graça, arrematou:
– O próximo! O próximo será o melhor de todos.
No funeral, antes do caixão se enfileirar para adega de Deus, o neto abriu um vinho e derramou lentamente o seu conteúdo na tampa de vidro.
Ele foi um anfitrião enterrado a sete palmos da terra e a três dedos de vinho.
Publicado em Vida Breve em 30/08/17
Um comentário:
Acho que devo ter lido no máximo uma mão cheia dos teus textos. Não me identifiquei particularmente com nenhum, mas me identifiquei com o autor. Gostei. Bottoms Up! P.s. não sou um robô
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