segunda-feira, 28 de agosto de 2017

QUANDO ELA NÃO DORME

Arte Eduardo Nasi


Nunca padeço para dormir. Na persistência de algum problema, eu me organizo para o dia seguinte, porque o cansaço não colabora a resolver nada, e facilita pensamentos repetitivos.
A obsessão se infiltrou em nossa vida a partir do conselho errado de contar carneiros – quem sugeriu essa desfaçatez? Aquele que conta, reconta, fiscaliza e não para de pastorear a matemática madrugada adentro.
A exceção à regra é de insônia emprestada. Não consigo dormir ao lado de alguém que não dorme. Não possuo tal grau de indiferença. Admito televisão alta, tela de celular piscando, festa de vizinhos – isolo os ruídos em minha mente. Já a vigília de quem amamos é insuportável.
A minha sorte é que a minha esposa é um anjo de despojamento, não sofre de solenidade para cochilar, pode ser sentada no sofá ou no cinema. Não é ansiosa e depressiva, não depende de frascos brancos para fechar docemente as suas pálpebras.
Sorte mesmo pois quando a mulher permanece na cama de olhos abertos estraga o meu sono. São faróis que atravessam o maremoto e a tempestade de minhas fantasias.
Uma coruja não seria tão persuasiva. Eu venceria a tentação da Medusa, porém não resisto à agitação alheia. Viro estátua. Não me concentro naquilo que estou sonhando, resvalo em distrações e tensionamentos.
Sou chamado à superfície. Não há como roncar com tranquilidade testemunhando, na vizinhança dos lençóis, o bate-estaca dos pés e das mãos de uma música eletrônica. É concorrência desleal. Não serei os três tenores do inconsciente. Cancelo o meu show, desligo a motosserra da garganta e suspiro a indecisão.
Fiquei craque em antever os incômodos. Quando a sua companhia se posiciona de conchinha e procura o aconchego do canto mais cheiroso do travesseiro, você não enfrentará problemas.  Mas quando ela se estica observando o teto é sintoma de extravio. Esqueça as ofensas e a auto-ajuda, e reze por um rivotril.
Por mais adultos que nos tornemos, dormir é um exercício solitário, cheio de manias desde o ventre da mãe. Minhas técnicas não terão serventia com alguém impaciente junto. Estarei amarrado ao desconforto. Não posso me levantar, pois é impossível acalmar com conversas e audição qualificada, apenas dobrará os índices de adrenalina.  Tampouco não tem como prestar socorro, o equivalente a apressar as respostas das palavras cruzadas.
Talvez pudesse levantar e preparar um chá. Só que os fantasmas ficam mimados quando bem tratados. Situação delicada, traumática, não é recomendável oferecer apoio, tampouco disponho de condições de capotar e fingir que não é comigo.

É um purgatório do relacionamento, o limbo dos casados. Quando acontece, resta rolar na cama e aceitar a noite perdida, controlando-se ao máximo para não reclamar do cansaço no café da manhã.  Cuidado: culpar o outro é ferrar com a próxima noite.

Publicado em Vida Breve em 22/03/17

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