segunda-feira, 28 de agosto de 2017

UM SEGUNDO PAI


arte: Eduardo Nasi


Moacyr Scliar estaria completando oitenta anos se estivesse vivo. Mas nós é que estamos mortos para ele, então ele completa uma eternidade a cada dia.
Herdei o seu espaço no jornal Zero Hora. Penso constantemente nele quando preparo a coluna. Ele é o meu editor de pensamentos, meu mago magro e elegante.
Nem mencionarei a sua importância histórica com contos (A orelha de Van Gogh), crônicas e romances (O Centauro no Jardim). Ele formou uma geração de leitores e renovou o gosto pela Bíblia em parábolas modernas e sátiras espirituosas e engraçadíssimas.
Scliar demonstrava uma gentileza fora do comum. Não entendo como encontrava tempo. Já o tempo sem ele entre nós, há seis anos, vem sendo tão curto.
Mandava cartas sempre que publicava um livro. Eu festejava quando recebia sua assinatura grande, emendada, pois escrevia bem e possuía uma caligrafia de convite de casamento. Foi o único escritor e médico que conheci com letra bonita.
Em minhas palestras, ele sempre aparecia um dia antes de mim. Onipresente, ubíquo. Poderia estar em Cascavel ou Garanhuns, a ponto de brincar na recepção de hotel:
- Scliar chegou?
Jamais combinávamos cafés, os acasos faziam a nossa parte.
Quando ele me enxergava, questionava:
- Está com seu pai?
Óbvio que não estava, por que diabos levaria meu pai a uma palestra?
Daí ele ria com seus olhos azuis infindáveis de coruja marinha:
- Então, aqui eu sou seu pai. Vou lhe cuidar.
Assim ele cumpria uma função de segundo pai: um pai nas viagens, um pai em trânsito, um pai fora de casa. Curioso e atento, dava recomendações que fugiam da amistosidade comum a escritores: que não bebesse para agradar aos outros, que não fosse dormir tarde, que não dispensasse a salada (muito além de uma decoração no prato). Aquelas perguntas inofensivas e importantes que os adolescentes odeiam responder, mas que estabelecem a intimidade.
Ressaltava que saúde era personalidade.
- Somos influenciados para o mal, jamais para o bem. Caráter é resistir.
Herdei a sua disciplina nas viagens. Nunca fui de excessos e de esnobar horários. Nunca fui de desrespeitar acordos e promessas.
Uma vez ele me explicou:
- Você é a sua palavra, na tinta ou na saliva.
O que ele esqueceu é que também posso ser uma palavra da lágrima, que agora insiste em não cair, educada, para não borrar nenhuma correspondência que tenho dele.

Enquanto escrevia, Moacyr Scliar também clinicava. E me curava com a sua arte.

Publicado em Vida Breve em 08/02/17

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