Foto Gilberto Perin
Felicidade é estar inteiro num único momento, não pela metade, não por frações de presença. O que tem acontecido é que residimos no celular, e a casa fica vazia de nossa algazarra. Espiamos a nossa vida real de canto de olho, fingindo que escutamos e participamos da conversa. Não ouvimos e daí repetimos as últimas palavras pronunciadas pelos familiares para ganhar fôlego e se envolver superficialmente com o que estava sendo dito.
Não trocamos os envelopes dos ganhadores do Oscar, mas nos confundimos com os nossos desejos, provocamos acidentes a partir de funda omissão e entregamos os nomes errados de nossas escolhas.
A insatisfação é a regra, acompanhamos postagens em praias paradisíacas, e nos ressentimos de trabalhar e estudar. Engatamos um papo aleatório com colegas e não nos mexemos em nossos intervalos de lazer. O corpo baixa a âncora e não navega mais pelos aposentos.
Uma cena comum é a família no sofá, cada um digitando no seu aparelho. Os pontos de convergência são raros.
Sempre estamos em outro local, teclando com outros, longe dali, e esquecendo quem se encontra próximo, rente, visível. Vamos investindo em distâncias e ausências e nos desacostumando com os abraços, com os beijos, com os risos a um palmo de nosso nariz.
No trânsito, na aula, no emprego, mantemos postagens infinitas nas redes sociais. Alimentamos uma doentia ubiquidade. Quem está em todos os lugares não está em nenhum.
É um coma digital, um permanente exílio das vontades. Verificamos o e-mail, o Instagram, o Facebook, o Twitter e nem temos noção do que iríamos fazer, e já nos dispersamos com aquilo que aparece na frente. Não há uma tarefa, porém a absoluta evasão dos dedos. O que era para levar alguns minutos demanda horas de imersão.
Não existe mais o tempo vertical e único, é tudo acumulado e sobreposto, mastigado de modo precário e inconstante.
As pessoas costumam se assustar com frequência quando interpeladas. A cabeça é obrigada a descer de paragens abstratas dos bytes e responder de repente. Percebe-se o grande esforço do distraído virtual para participar do cotidiano concreto e dos apelos por atenção. Ele é pego em flagrante não fazendo nada e arruma desculpas de fotos e vídeos interessantes. Partilha links engraçados, memes e não se reparte com quem mais precisa. Demonstra conhecimento dos tópicos do momento, mas não se atualiza na intimidade.
A imobilidade nos levará para a indiferença. Exercitaremos a inveja, a indiscrição e a cobiça, e não o amor, a saudade e a amizade familiar.
Época esquisita, esdrúxula, inexplicável, onde somos íntimos de estranhos e estranhos dos nossos íntimos.
Publicado em O Globo em 10/03/17
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