segunda-feira, 28 de agosto de 2017

POR DECÊNCIA EM SANTA MARIA

Pintura de Van Gogh

Quatro anos depois do massacre da boate Kiss, com o fim assustador de 242 pessoas em janeiro de 2013, ainda não temos nenhuma condenação.
Diante da tentativa de indenização por danos morais de uma das famílias de um dos jovens mortos, a procuradora da cidade colocou a culpa nas vítimas, chegando ao despropósito de criminalizar os frequentadores por estarem embriagados, alegando que poderiam ter saído e não saíram. De onde? E o pânico? E as labaredas crescendo em segundos? E a multidão pisando em quem era derrubado? E a asfixia da fumaça em ambiente sem ventilação?
Eis as palavras da procuradora: "Não há como ignorar o fato de que diversas pessoas que estavam na frente ao palco, onde começou o incêndio, conseguiram sair do local; ao passo que outras tantas, que estavam muito próximas à porta de saída, não abandonaram o local".
Entendo que a procuradora é paga para fazer o seu trabalho de defender o município, buscando estabelecer atenuantes, mas o bom senso tem limites.
É inacreditável, é inaceitável que queira inverter a situação e culpabilizar os adolescentes mortos pela precariedade do estabelecimento e das autoridades que autorizaram o funcionamento da casa noturna. Na mesma linha de raciocínio, assim uma mulher, estuprada quando estava bêbada, facilitou a aproximação, ou um homem esfaqueado, quando estava bêbado, não desfrutava de condições para se defender.
Morte não é ressaca, procuradora. Morte não passa com aspirina. Morte não acaba na manhã seguinte.
Desculpas não mudam o destino da verdade, a condenação dos verdadeiros culpados é a única explicação possível e necessária.
A boate Kiss era uma ratoeira, não contava com saídas de incêndio e muito menos sinalização. Tudo favorecendo a ditadura da comanda, uma única porta para ninguém sair sem quitar a consumação. Assim 242 inocentes pagaram com a vida uma noite para se divertir com os amigos. E este é o troco ético oferecido aos familiares?
O assassinato coletivo, muito além da tragédia, é resultado da avareza empresarial, da mesquinharia, do lucro rápido e imediato, sem planejamento preventivo e com fiscalização complacente às graves falhas das normas de segurança.
Não ofenda mais os pais que já sofreram tanto, não humilhe mais os pais com a burocracia das mentiras, eles já ultrapassaram a sanidade e santidade do insuportável, já recolheram os sapatos chamuscados dos filhos no local para reencontrar algo que despertasse a paternidade de volta.
Os filhos universitários, com idades entre 18 e 20 anos, estariam formados hoje, e somente a omissão foi diplomada até agora.
Não existiu colação de grau, não existiu diploma, não existiu toga, não existiu canudo jogado para cima, não existiu início promissor de profissão, perdemos naquela noite futuros agrônomos, médicos, advogados, enfermeiros, empresários, terapeutas ocupacionais, engenheiros florestais, tecnólogos em alimentos, jornalistas, relações públicas, publicitários, economistas, nutricionistas, psicólogos, turismólogos, veterinários, professores de educação física, administradores, farmacêuticos, meteorologistas, arquitetos, bailarinos, bioquímicos, economistas, artistas plásticos, filósofos.
Os pais repetem o drama de Antígona de Sófocles. Não desistem da retratação.
Tal como Antígona, na tragédia grega, nunca desistiu de enterrar seu irmão. Polinices teria seu corpo largado a esmo, sem o direito de sepultamento e entregue às aves de rapina e cães. Antígona não admitiu a ordem do rei Creonte e o descaso do corpo do irmão sem os ritos sagrados. Mostrou-se inconformada com às leis humanas por não estarem em concordância com às leis divinas, regidas pelo caráter.
Enterrar os filhos de Santa Maria é não fingir que nada aconteceu, é não permitir que a notícia seja reduzida a uma data no cabeçalho do jornal, é esclarecer o crime e responsabilizar os seus autores.

Enquanto não resolver esta injustiça, o Rio Grande do Sul não tem como dar certo. Extraviou o seu rumo de grandeza. Parou no tempo. Parou na súplica. Parou em Deus. Parou na oração. A injustiça é paralisia. Nossa cabeça está virada para trás, para as cinzas ainda fumegando. Não haverá chuva que termine com a fumaça negra daquela madrugada. A pendência moral gigantesca de Santa Maria é o nosso atraso. Quem não cuida de seus mortos não terá decência para vigiar e honrar os seus vivos.

Publicado em 05/03/17

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