quinta-feira, 21 de março de 2019

A PORTA ABERTA DE MEU QUARTO

Toda criança antiga era uma artesã.

Eu, por exemplo, inventava os meus brinquedos. Não tinha videogame, computador, celular. Os jogos custavam caro.

Tudo o que a minha mãe dispensava da cozinha, eu aproveitava: potes de margarina, sacos de papel do mercado, garrafas. Fui a coleta seletiva da família.

Brincava no pátio, nunca dentro de casa. A minha porta do quarto sempre esteve aberta: não havia necessidade de bater, não havia ninguém dentro.

Com o meu amigo Zé, fiel ombro até hoje, fazíamos luta medieval com a tampa do lixo servindo de escudo e a vassoura como lança. Passávamos horas entretidos em armaduras imaginárias.

Também gostávamos de fazer pontes para as formigas com os palitos que sobravam dos raros picolés de domingo. Abrimos uma transamazônica do abacateiro até a ameixeira.

As formigas continuam nos cumprimentando pela construção, jamais fomos picados por elas. Nutrem um imenso respeito pelo nosso trabalho.

Com as folhas que meu pai jogava fora de sua máquina de escrever (os poemas que não davam certo), aproveitávamos para montar aviãozinho. Nossa diversão se valia dos rascunhos. Dobrávamos os papéis com perfeição, criando caças e jatos supersônicos. Quando descobrimos que as dobras inversas nas pontas tornavam os nossos modelos imbatíveis, gritamos aos céus palavrões proibidos pela escola, com uma liberdade sem tamanho.

Os aviõezinhos permaneciam por 15 segundos planando. Enxergávamos anjos partindo de nossas mãos.

Subíamos ao telhado da residência para realizar os testes de lançamento. Nossa meta de Nasa consistia em atingir a janela da Bete, vizinha e colega. Por duas vezes, conseguimos entrar pelas suas vidraças com recados amorosos. Nem eu nem ele namoramos com ela, mas a esperança pelo seu beijo ocupou boa parte do nosso Ensino Fundamental.

Nos dias de chuva (tempestade não nos assustava), armávamos barquinhos, arremessados pela correnteza do meio-fio. Quem atingisse o bueiro mais distante ganhava a corrida.
Não servimos ao Exército, mas merecíamos uma medalha de honra ao mérito por tanta cabeça de papel projetada em nossas rondas pelos terrenos baldios do bairro.
Minha infância e de Zé foi feita da riqueza das sobras. Nunca sobrava tempo para o tédio.

Publicado em Jornal Zero Hora em 05/6/2018

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