quinta-feira, 21 de março de 2019

O ABORTO DAS PALAVRAS

A maior agressão a um filho é dizer que ele nunca deveria ter nascido.

Na mesma linha, qualquer criança engasga com “você estragou a minha vida”.

Um menino ou menina ouvindo isso pode carregar na memória a culpa pelos sonhos interrompidos dos pais, o que não condiz com a realidade. Nenhum filho pode ser indiciado pela escolha profissional ou pessoal de seus progenitores.

O que me apavora é que a maior parte dos abortos acontece pela boca. Pelas palavras infelizes.

A todo instante, alguém pode se apequenar pela raiva ou ódio de uma expressão impensada.

Quantos estão desaparecidos dentro de si por uma frase, perdidos de sua origem?

É essencial se prevenir também para não abortar os pais envelhecidos, como que repreendendo pela idade avançada e sacrifícios que podem gerar.

Um descuido de linguagem compromete o amor. Falar, sem se dar conta, perto deles, de que não tem com quem deixar o pai ou a mãe acaba ecoando como absoluto descarte. É reconhecer a inutilidade da paternidade e da maternidade, condicioná-los a um estorvo. Ser passado adiante imprime, precocemente, o atestado de óbito.

Envelhecer não é agradável. Exige humildade e preparo. Você tem ideia do que é não controlar mais a bexiga ou o intestino e usar fraldas descartáveis? O que significa a regressão física na mais completa lucidez e maturidade intelectual? Diferente de um bebê, saber o que está ocorrendo e não ter como evitar?

O que era frágil torna-se difícil, o que era automático começa a ser custosamente ensaiado.

“Não posso falar agora” ou “não tem como lhe atender no momento” retiram os espaços para a confissão. Telefonar de novo ou puxar assunto em outra hora exigirão o dobro de esforço dos pais.

Não é que eles não procuraram, eles não conseguiram quando tentaram.

A ausência de paciência para ouvir complica a assistência e o socorro. Quem sempre contou com domínio para se cuidar sofre uma imensa dificuldade de mudar de lado e suplicar apoio.

A insistência tende a virar mendicância, e eles vão se calar para não serem literalmente recusados, para evitar o “não” declarado e insustentável de seus filhos.

Caçam brechas para propor o pesado diálogo. Diante das desculpas, recuam.

Assim como a criança que escuta que não deveria ter nascido e jamais toca no assunto no futuro, o idoso guarda a certeza que não deve atrapalhar os próximos com as suas dores. O primeiro não deveria nascer, já o segundo deveria morrer em paz.

São pontas do mesmo círculo de rejeição.

Os pais, adoecidos ou fragilizados, desistem de comunicar as suas urgências sem encontrar, em contrapartida, o mínimo de empatia. Experimentarão o medo de incomodar a felicidade filial, a tranquilidade e juventude do lar, a estabilidade do casamento, e não pedirão ajuda. Estarão constrangidos para a sinceridade.

A sinceridade depende da presença, depende da disponibilidade. Não há como se abrir na pressa.

O que costuma acontecer é o sofrimento solitário do idoso, apesar da família numerosa. Sairá para exames desacompanhado, esconderá os resultados, mentirá o seu verdadeiro estado de saúde e se dobrará em posição fetal na completa insignificância de sua memória.

Crônica publicada em 20/5/2018

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