segunda-feira, 25 de março de 2019

NO TEMPO EM QUE OS CARROS TINHAM CAPÔ

Uma das grandes alegrias de meu pai e de minha mãe era colocar os quatro filhos no capô da Belina.

Eu me recordo da sensação feliz de sentar no aço quente do motor, eu me esticava até o para-brisa, com os pés estirados. Cabia a turma inteira na foto.

Prosperava um sentido de liberdade inigualável naquele rápido recreio da família, com a brisa agigantando os cabelos.

Vinha a ser o momento de admirar a paisagem da Serra durante trégua da viagem até a casa de meus avós, em Guaporé. Parávamos meia hora em algum belvedere, diante da calmaria das montanhas, para lanchar cuca com as mãos e apontar para o voo dos pássaros.

A idílica cena deve soar absurda em nossa época. Hoje, os capôs não servem como sofá para as crianças. Os carros são frágeis, com outra textura, quase de plástico. Se alguém sentar no capô, amassa tudo.

Além de o desenho fabril ter seguindo a linha abaulada. Todos os veículos atualmente têm complexo de Kombi. A frente é curva, mais para um escorregador do que para um jardim.

Os carros na minha infância ostentavam um canteiro quadrado que permitia a interação e o piquenique. No Galaxy, dava para jogar amarelinha. No Opala, eu girava pião sem arranhar. Na Veraneio, podia montar um palco e dançar chula em cima. O Corcel oferecia estrutura de pôquer para distribuir o baralho e jogar às ganhas.

E ainda havia o Corcel, o Chevette, o Dodge, o Maverick com uma infinita área de lazer. Só o Fusca se diferenciava no contexto da reunião da parentela, costumava ser automóvel de solteiro ou de casal recente.

Mas os carros grandes também contribuíam para os desfiles. Assisti à passagem da miss Rio Grande do Sul pela Avenida Osvaldo Aranha. Ela acenava sentada no capô, poderosa, com os reflexos do sol na lataria e na sua coroa. Na Semana Farroupilha, as prendas também ocupavam o destaque na carroceria, com o vestido espalhado em suas várias dobras e camadas de renda, qual vitória-régia.

O capô já foi uma mesa familiar, o nosso mirante, o nosso ponto favorito de encontro, em que enxergávamos os problemas e desavenças de cima, muito menores do que realmente são.

Publicado em Jornal Zero Hora em 26/7/2018

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