Não cometa o pecado de levar a sua esposa ao médico quando está doente. Não poderá mentir depois ou suavizar os sintomas.
Tudo bem quando você era menor e dependia da carona de sua mãe no momento em que ardia de febre e ela entrava pela porta sem ser convidada, sacolejando a bolsa e com o distinto policial adulto para tecer as observações mais constrangedoras do inquérito pessoal. Significava uma fase de sua vida, de evidente dependência, não havia como se defender da gentileza impositiva.
Mas agora, com a mulher, tem condições de ir sozinho. Basta não fazer drama. O problema é que o homem faz drama na primeira sequência de espirros, como se fosse morrer engasgado. E convida a família inteira para assistir a sua morte psicológica e transforma o carro numa ambulância da SAMU.
Se cometer a loucura de admitir a companhia da esposa, não falará nada. A cada pergunta, ela responderá em seu lugar. Será a reedição cruel da infância. Verá uma sucessão gratuita de delações de suas prazerosas molecagens:
- Ele anda de pés descalços pela casa.
- Ele dorme com ar condicionado em 18 graus.
- Ele não leva casaco de noite durante o sereno.
- Ele não protege a garganta.
- Ele vem se alimentando mal, não come salada.
Só caberá o gesto de baixar a cabeça e concordar. Acabará sendo uma ovelha tosada na frente do doutor.
Com o diagnóstico e atestado para dois dias, não terá condições de jogar futebol na noite seguinte com os amigos (a gloriosa pelada da semana!) ou viajar a trabalho em uma reunião importante. Raciocine que ferrou a sua programação, pois contará com forte oposição, fiscalização e patrulha para mudar os hábitos e permanecer de molho.
Se você foi ao médico para sair da cama, ficará agora preso nela por um bom tempo. A esposa vai se transmudar em enfermeira, e não será uma fantasia erótica, porém cruel, aparecendo com o copo da água e a pilha de remédios a cada doze horas. Enfrentará a obrigação de tomar toda a cartela de comprimidos por seis dias - quando, sozinho, longe de testemunha, tudo já estaria resolvido em 24 horas. Verá uma perseguição com termômetro pelos corredores e será forçado a vestir aquele maldito pijama de flanela presenteado pela sogra, apenas desarquivado em urgências.
E não ouse contrariá-la para não deflagrar uma discussão de relacionamento e receber frases fatais sobre o seu comportamento inconsequente: "não vem pensando na gente e nos filhos", "não dá valor à saúde", "assim não viverá muito".
Você conferiu autoridade para a vigilância, e não conta com margem de manobra para culpá-la, já que a esposa está cuidando gratuitamente, por puro amor.
Não transforme a gripe em quarentena. Pior que adoecer, é perder a liberdade de fingir.
Publicado em Donna ZH em 13/5/2018
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