quinta-feira, 21 de março de 2019

SELFIE DE NOSSO TEMPO

O olhar não sai mais do chão.

Enquanto caminhava pela minha rua, todos que passaram por mim não me viram. Tanto faz ser de carne ou invisível. Tanto faz. Poderia trajar biquíni ou andar com as vestes reluzentes de rei mago, tampouco provocaria escândalo.

As pessoas se fixavam em seu celular. Aguardavam um carro de aplicativo, respondiam uma mensagem, telefonavam para alguém. Ninguém caminhava de verdade. Sugados pela realidade virtual de seus dedos, não interagiam, não cumprimentavam, não poderiam sequer dizer a sua localização precisa.

Largaram a sua residência, mas não as preocupações de suas redes sociais.

O celular está nos encurvando. Não duvido que retomemos a postura de primatas.

Tudo é horizontal, nada é mais vertical.

Não observamos o alto dos prédios, o formato das nuvens, a posição das estrelas. Não procuramos acompanhar o rasante de um pássaro e a tapeçaria dos fios telefônicos. Não espiamos se há ninhos nas árvores e casinhas de joão-de-barro nos postes de luz. Não definimos se irá permanecer o sol na manhã seguinte pelo horizonte avermelhado.

A bússola morreu dentro do relógio. O que vale são números digitais. Poucos conhecem as horas pelos ponteiros.

As crianças não estão mais se situando pelas constelações. Algumas desconhecem até as fases da lua.

Não procuramos mais Órion e Cão Maior. Não mais nos surpreendermos com as Três Marias. Não mais rimos quando achamos Touro e confirmamos que o seu desenho luminoso condiz com o animal. A noite vem sendo uma praia deserta, com seus grãos estelares jamais pisados pelas nossas pupilas.

Como se o nosso mundo fora reduzido a altura das mãos, como se tivéssemos eternamente cinco anos, com a estatura entre a cama e a mesa.

Estamos mais próximos da cova do que do céu. Mais próximos da morte do que da esperança.
Se aparecessem anjos voando pelos telhados, não seriam percebidos. Levitariam anônimos pelas chaminés. Milagres não chamariam atenção. Só acreditamos em posts e vídeos, não naquilo que acontece em nossas janelas.

Perdemos a capacidade de olhar nos olhos de quem amamos. É muito alto, muito fora do perímetro do aparelho.
Temos medo de encarar o que é vivo e intenso, o que pede ajuda e abraço. Olhar nos olhos é dizer alguma coisa, é romper o silêncio de nossos casulos.
Desaprendemos a nos reconhecer no outro. Somos distantes mesmo próximos. Nosso espelho é a selfie, não mais o amor.

Publicado em Donna ZH em 10/6/2018

3 comentários:

Anônimo disse...

Qual o gênero desse texto?

Anônimo disse...

Texto

Luiz disse...

É uma crônica.