segunda-feira, 25 de março de 2019

A CABEÇA DA AGULHA

Tinha que pregar um botão em minha camisa. Já tinha definido a roupa para o aniversário da tia de Beatriz. Estava atrasado. Não queria olhar de novo todo o guarda-roupa para uma nova escolha. Deduzi que seria menos trabalhoso repor o botão, já que a calça combinava com a estampa que combinava com o casaco que combinava com os sapatos.

Sofria para atravessar o algodão na cabeça da agulha. Ia pelos cantos, jamais por dentro. Como um gol falso festejado pela torcida, quando a bola vai pelo lado de fora da rede.

Apelei para o meu filho:

- Você pode pôr a linha para mim? Tem olhos melhores que os meus.

Ele colocou sem muito esforço. Atingiu o alvo até com humilhante facilidade.

Sem querer, eu reencenava com o meu filho o gesto e as palavras de minha mãe comigo na infância. Iguaizinhos. O flashback foi assustador. Eu me revi pequeno na cozinha, e a mãe me confiando à missão: “Seus olhos são melhores que os meus!”.

Eu me achava útil costurando a rara fragilidade ocular de minha mãe; ela, que parecia não apresentar defeitos.

Dificilmente ela pedia ajuda, mania dos pais. Ela já havia tentado em vão seguir sozinha, molhando a ponta do fio com a saliva, sem resultados imediatos. Ladeava o aço, com a visão embaralhada e um quê de ansiedade.

O ato de encilhar a linha na agulha demonstrava ser mais grandioso do que eu imaginava. Três gerações - avó, pai e filho - se juntavam numa mesma mão, atravessando três décadas. O tempo corre, mas a família permanece se ajudando.

Quantas afirmações de minha mãe, inconscientes e preciosas, ainda existem em mim para serem repetidas?
Havia tanto amor envolvido naquela banalidade doméstica: a esperança de costurar as próprias roupas, a decência do pouco, o cuidado com aquilo que se tem

e também a felicidade de realizar uma tarefa a dois, que poderia vir a ser de uma solidão ingrata.

Na cabeça da agulha, três cabeças pensavam simultaneamente, três cabeças se amavam. O nó da garganta selava a nossa sincronicidade.

O que me leva a parafrasear, generosamente, a Bíblia: é mais fácil passar o filho pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus.

Publicado em Jornal Zero Hora em 03/7/2018

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