sexta-feira, 1 de março de 2019

SORRISO LARANJA VAN GOGH

Não falar mal de quem você recentemente brigou é um batismo de fogo. Ainda mais quando a pessoa é elogiada.

Você passou a noite inteira aos berros com o seu marido. Está furiosa, insone e louca para tirar a limpo as desavenças. Não suporta ficar perto. É justamente, neste momento, que tem a maldição de esbarrar no banco com o melhor amigo dele, que não cansa de elogiá-lo. “Fulano é ótimo, carinhoso, lhe ama muito, você tem uma grande sorte”.

Nesse instante, o natural é desossar a figura, dizer que está enganado, que não conhece nada, que é um grande cretino, insensível, egoísta. Mas precisa se segurar e apenas sorrir laranja Van Gogh. São as provações da vida: não confundir um momento ruim com o destino de toda uma personalidade. Exige sangue-frio mesmo não acessar a raiva quente, pronta para um expresso de ofensas, achar o ponto de equilíbrio, transformar o café em chá, relevar e não cometer uma injustiça.

Pode eternizar uma falha, um dia triste, em detrimento de um histórico de alegrias e acertos. Não tem sentido escrever um diário em apenas uma folhinha do calendário arrancada.

Quem já não enfrentou o constrangimento de discutir com alguém e logo em seguida encontrar um outro só falando bem do sujeito? Os passionais não se controlam e despejam a bílis. Acabam espalhando boatos e depois fazem as pazes e não há como recolher as palavras.

As aparentes casualidades são treinos de resistência. É se desentender com o pai e dar de cara com o colega de trabalho dele perguntando como ele está. É bater o telefone na cara da mãe porque ela não entende as suas escolhas e ser abordada pela tia na rua que aponta o quanto você tem uma mãe compreensiva. O impulso é exumar o cadáver, sem piedade, desabafar as crises de relacionamento. Raros os que se aguentam, e não compram o apocalipse na hora.

Parece piada, mas é o que mais acontece. Só é entrar em atrito com um afeto que os anjos aparecem nos ombros para uma acareação.

Feliz quem pensa antes de falar. E mostra o brilho dos dentes em vez do veneno da língua.

Publicado em O Globo em 28/3/2018

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