quinta-feira, 21 de março de 2019

ÁRVORE DE MINHA VIDA

Minha mãe deixa os seus troféus no alto da estante do escritório. Lá estão os quatro Açorianos, o Erico Verissimo, o Casa de las Américas (Cuba) e o da Associação Paulista dos Críticos de Arte: esculturas que simbolizam 30 anos de literatura.

Numa de minhas mateadas com ela, na varanda, com folga, aproveitei para tirar o pó dos seus galardões. Como ela tem seus 79 anos incompletos e evita escadas, peguei o paninho amarelo para lustrar as suas vitórias. Mas quase caí do último degrau quando avistei, entre tantas honrarias significativas, um objeto não identificado, estranho, tosco, que não parecia nunca um prêmio.

Só gritei:
– Tem algo fora do lugar. O que é isso?
E levantei uma lasca de madeira em sua direção. Antes de permitir que ela me respondesse, ao virar a lasca, percebi a minha letra: MÃE TE AMO.
Era um cartão que fiz aos sete anos. Ela havia me ensinado a ler e a escrever contra tudo e contra todos, apesar do diagnóstico de retardo mental e do convite da escola para desistir por falta de condições.
Quis agradecer a ela naquele segundo domingo de maio de 1980. Lembro que evitei o papel, procurando algo que durasse por mais tempo, que não rasgasse, que não borrasse, que não amarelasse. E arranquei uma lasca da minha ameixeira. Com canivete, desenhei as palavras. Ninguém mais poderia apagar aquilo. Ninguém mais poderia corrigir a declaração.

Foi um bronze do meu obrigado.

A folha permite o remorso, já quem escreve nas árvores ultrapassa o medo de errar pelo amor puro, pelo amor infantil, pelo amor incondicional.

Nem imaginava que ela ainda guardava a pequena tábua, após tantas mudanças de residência.

– Por que pôs aqui?

A mãe esperou que eu descesse, colocou o meu rosto na moldura de suas mãos geladas da manhã, de quem havia lavado a louça, e me disse:

– Você é o meu maior troféu como escritora.

E começou a rir quando eu, naquela hora, magicamente, reduzi de tamanho e desandei a chorar. Voltava a ser criança, menino mirrado, magrinho, tímido, loiro, diante da majestade da minha mãe, precisando de uma escada que apenas existe no coração, esforçando-me para pegar os frutos doces dos olhos dela.

Publicado em Jornal Zero Hora em 08/5/2018

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito lindo. Nós mães somos assim, guardamos cada presente como um tesouro.