Eu fiz aquilo que sempre odiei.
Notei uma mancha de pasta de dente no casaco do abrigo de meu filho antes da saída para a escola e tentei limpar com a saliva. Foi um gesto impensado, passional, visceral. Quando vi, já raspava a unha no tecido. Havia desaparecido o pedágio do pudor dos pensamentos e segui com os braços em alta velocidade.
— Que é isso, pai?
Ele me censurou e, então, caí em mim. Acordei do transe paterno, do coma do instinto que atinge os bichos com as suas crias. Resmunguei uma desculpa, mas ainda estava, mesmo errado, me sentindo convicto do meu ato. Veio a confusão de lembranças: ser pai é voltar a ser filho.
Lembrei que a mãe tinha a mania de tirar alguma mancha do meu uniforme escolar umedecendo o dedo em sua boca. Assim como ela virava as páginas das revistas nas salas de espera dos consultórios. Achava nojento. Preferia ir para a aula sujo a ir com o casaco cuspido. Não me faziam mal manchas de café ou do Nescau, justificáveis, eu me incomodava com a esfregação improvisada. Jamais sonhei que estaria no outro lado do balcão da alma, realizando o que abominava. Jamais imaginava que, de vítima, viraria protetor.
Mas a vida propõe a mudança generosa de lugares. Eu só não queria o meu filho entrando na sala deselegante. Ele pairava acima dos meus nojos e preconceitos. Não teria mesmo como me controlar. A educação supera condicionamentos e medos e somos mais do que a nossa mera identidade.
Não sofro com a fama de chato que possa receber por minhas tempestuosas manias.
Uma hora ou outra, o feitiço atingirá o feiticeiro. O que mais odiamos, com o tempo, será o que mais amaremos. Eu amo o que odiava. Amo fazer coisas de meus pais que odiava neles. Amo ser hoje os meus pais. Com os hábitos invasivos de mexer no cabelo dos filhos de repente, para ajeitar o penteado, ou de me agachar do nada para arrumar as bainhas das calças presas nas meias. E apanhando até terminar as tarefas: eles estapeiam as minhas mãos quando sou frenético pente ou começam a caminhar quando sou imóvel engraxate. A resistência deles com "para, pai" ou "não precisa disso" aumenta a minha ternura. Experimento cenas patéticas e ridículas publicamente.
Surgem relâmpagos de cuidados que não sei frear. Riscam o céu de minhas veias.
O clarão impulsiona o corpo e ele simplesmente obedece. A impressão é de que morreria se não fizesse. Chamava a minha mãe de dramática e agora divido o palco com ela na ópera do cotidiano.
Talvez o zelo morasse em mim desde pequeno, esperando a paternidade para aflorar.
Publicado em Jornal Zero Hora em 29/08/17
2 comentários:
O meu pai sempre me beijava quando eu era pequeno e hoje eu encho o meu filho de cinco anos de beijos e ele fica esquivando dizendo: "Para pai!"
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Minha mãe dizia que eu era liiiinda de uma forma tão exagerada que me enchia de vergonha. Faço o mesmo com minha filha e ela também me acha muito louca.
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